O David Mamet, eu e os usos da faca

A conta dava 9,40.
“Débito, por favor.”
“Tu não precisa de mais nada? Só para inteirar 10 reais?”
Peguei dois chicletes de 0,25. Devolvi. Peguei um chocolate de 1,25. Valor total: 10,65.
O homem digitou 11 reais na máquina.
“Deu 10,65”, eu disse.
“Eu ia te dar mais um chicletezinho. É só para inteirar 11.”
Silêncio.


“Desculpe”, ele disse. “Geralmente pergunto antes.”
“Não, tudo bem”, eu disse. “É só que fico puto com isso.”
“Então desputeia. Não vale a pena ficar puto por tão pouco. E o importante é a máquina funcionar.”
“A minha mãe tem uma loja. Eu sei que essas máquinas funcionam até com um real. Só que sempre tem a taxa de utilização que o lojista tem de pagar.”
“E a sua mãe gosta de passar um real no débito?”
“Claro que não.”
“Tá vendo…”
“Mas 10 reais ela passa sem tentar empurrar mais coisas para o freguês.”
Olhares
Lembrei então do David Mamet. O dramaturgo e roteirista estadunidense tem um pequeno livro – 80 páginas – chamado Três usos da faca – sobre a natureza e a finalidade do drama. É um livro básico, com algumas tiradas úteis. Das que eu me lembrei (fui conferir ao chegar em casa, estão justamente na página 11):

Dramatizamos a vida lançando mão do exagero, da justaposição irônica, da inversão e da projeção, todos os instrumentos que o dramaturgo utiliza para criar e o psicanalista usa para interpretar fenômenos emocionalmente significativos.
Dramatizamos um incidente tomando os eventos e reordenando-os, alongando-os e comprimindo-os, a fim de poder compreender seu significado pessoal para nós.
Olhares.
O homem: “Você tem sorte que eu não sou daqueles que guardam uma arma embaixo da caixa registradora.”
Eu: “O senhor tem azar.”
“Eu tenho uma arma”, eu disse. “É uma faca, na verdade. Um canivete. Daqueles de acampar. Com um botão. Aperto o botão, a lâmina abre. Bem afiada.”
Que cada um imagine a expressão do homem no caixa.
Eu: “O senhor também tem sorte. Não estou a fim de usar a faca agora.”
Joguei uma nota de 10 reais no balcão, peguei o meu cartão e o meu pacote e saí.

Autoria: Luís Roberto Amabile
Doutorando da Faculdade de Letras / PUCRS
Colaboração:
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