Franz Kafka, o criador de livros que são também labirintos, em algum momento inventou animais fantásticos. Eles estão dispersos por sua obra e vão além do inseto em que se transformou Gregor Samsa na primeira frase de A metamorfose.
O primeiro aparece em Preparativos para o casamento no campo, um dos primeiros livros de Kafka, do qual poucas páginas foram recuperadas. Ali está a descrição, algo onírica, de um animal com contornos incertos (cauda de raposa, traços de canguru e uma cabeça que lembra a dos seres humanos) e comportamento fugidio: “É um animal com uma grande cauda, de muitos metros de comprimento, parecida com a da raposa. Às vezes eu gostaria de segurar aquela cauda na mão, mas é impossível; o animal está sempre em movimento, a cauda sempre de um lado para outro. (…) Costumo ter a impressão de que o animal quer amestrar-me; senão, que objetivo pode ter subtrair-me a cauda quando quero segurá-la, e depois esperar tranquilamente que ela torne a atrair-me, e depois tornar a saltar?”.
No conto “Um cruzamento”, o animal mencionado (parte gato e parte cordeiro) surge como uma herança por parte de pai. Assim nos conta o narrador, no primeiro parágrafo do conto: “Tenho um animal curioso, metade gatinho, metade cordeiro. É uma herança de meu pai. Em meu poder ele se desenvolveu por completo: antes era mais cordeiro que gato. Agora é meio a meio. Do gato tem a cabeça e as unhas, do cordeiro o tamanho e a forma; de ambos, os olhos, que são esquivos e fascinantes, a pele suave e ajustada ao corpo, os movimentos ao mesmo tempo dançarinos e furtivos. Deitado ao sol, no vão da janela, vira um novelo e ronrona; no campo corre como louco e ninguém o alcança. Foge dos gatos e quer atacar os cordeiros. Nas noites de lua, seu passeio favorito é a canaleta do telhado”.
Os dois animais foram catalogados por Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero e constam no bestiário chamado O livro dos seres imaginários. As criaturas de Kafka aparecem ao lado de fadas, dragões, demônios e elfos, e de seres sonhados por C. S. Lewis e por Edgan Allan Poe.
- Autoria: Iuri Müller
- Mestrando da Faculdade de Letras / PUCRS
Faculdade de Letras / PUCRS