Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando do que me deslumbra ou assusta desde criança, dialogando com o fascinante – às vezes trevoso – que espreita sobre nosso ombro nas atividades mais cotidianas. Fazer ficção é vagar à beira do poço interior observando os vultos no mundo, misturados com minha imagem refletida na superfície, assim a Lya Luft discorre sobre seu ofício em O rio do meio (1996).
A Lya Luft, por quem nunca me interessei, mas a quem me obriguei a ler quando soube que participaria do “Cafezinho Literário”. Trata-se de um projeto da Faculdade de Letras da PUCRS no qual os convidados apresentam autores ou obras que influenciaram sua trajetória. E dessa vez o café não foi amargo. A Lya Luft falou do Érico Veríssimo e mostrou que é boa de prosa. De conversar e escrever, pois não é que acabei gostando de muita coisa da literatura dela? Principalmente no início de carreira, vide o ótimo primeiro romance, As parceiras (1980).
Ao final de sua fala, aproveitei para saber de seu processo criativo. Eis o que me ficou das perguntas que fiz e das respostas que ouvi:
A senhora poderia comparar o seu processo de criação com o do Érico?
O processo criativo dele era diferente do meu. Tudo era muito planejado, muito programado, e tinha de ser mesmo (em virtude do tamanho dos livros). Ele desenhava, incorporava os personagens, até fazia imitações deles, do jeito de falar.
Eu não poderia fazer isso, sou muito distraída. Minha mãe me falava “A Lya vive nas nuvens”, acho que confio mais no inconsciente. Quando começo a escrever tenho uma ideia de começo, meio e fim, mas o romance para mim, em dado momento, assume uma estrutura própria. O escritor pode desmanchá-la, claro, mas nessas horas eu escuto mais.
Lembro que ficção vem de “fingere”, fingir em latim. Ou seja, ficção é fingimento, é sinônimo de mentira. Por isso digo que, para mim, a ficção é uma mentira que se tornando verdade para o escritor, no meu caso, a minha verdade.
Nunca dou para amigos lerem trechos de meus romances, acho que pode ser válido isso, mas sou muito fechada.
Antes de se tornar uma autora, a senhora traduziu vários e diversos autores. Isso influenciou o seu modo de escrever?
O escritor que traduz cria uma barreira entre a obra traduzida e a sua obra. É uma defesa inconsciente, eu acho, ou escreveríamos romances à maneira do último escritor que traduzimos. Então não me influenciou em nada, eram livros muito diferentes entre si, em línguas diferentes da minha. A grande coisa das traduções é o exercício. Traduzir fez com que eu escrevesse o dia inteiro, praticamente. Eu, uma leitora voraz, ficava escrevendo o dia inteiro, sejam as minhas obras, sejam vertendo as obras de outros colegas, refletindo como eles gostariam que suas palavras soassem em português. Para ser escritor, tem de exercitar muito, nem que seja para jogar fora, e eu pude fazer isso ao ponto de escrever, para mim, tornar-se tão natural quanto respirar. O que não quer dizer que não retrabalho o texto, que exijo as palavras certas para as minhas frases. O escritor precisa ser senhor das palavras.