24Hoje eu sonhei que era o Jeffrey Steingarten. Acordei no meio da noite, logo após o sonho, e tinha certeza de que era ele. Sabe aquele momento nem desperto nem dormindo? Eu era o Jeffrey Steingarten quando ele era advogado – ele foi advogado antes de virar colunista da Vogue estadunidense, antes de reunir as colunas, na verdade são crônicas de suas descobertas gastronômicas, em O homem que comeu de tudo, aliás, um título muito bom, eu queria ter pensado nesse título antes.
O que eu fazia no sonho? Eu precisava comer tudo de que não gostava. Era como um teste que eu tinha me imposto. Agora você vai perder todos os seus preconceitos alimentares. Se alguém come essa comida, você também pode comer. O Jeffrey Steingarten já passou por isso. Porque tudo é questão de hábito, é cultura. Não existem aversões inatas, era o que eu tinha decidido depois de ler sobre o assunto. Então fui ao Vietnã, sempre quis conhecer o Vietnã, e comi espetinhos de insetos numa barraca de rua. A textura era boa, crocante.
O Uruguai também estava no roteiro, e pedi testículos de boi. Foi difícil, porque me lembrava do cheiro de urina. Mas me esforcei, os gaúchos de lá comem e gostam, eu também podia. Não precisava adorar, mas era possível sentir algum prazer. Se eu quisesse deixar ser advogado e merecer virar crítico gastronômico, eu tinha de comer de tudo. Pensei: ok, esta é a primeira vez que estou comendo testículos, mas da próxima, e haveria uma próxima, já saberia avaliar.
Depois preparei sopa de mandioquinha. Sempre odiei o cheiro da mandioquinha, minha mãe preparava desde pequeno e aquele odor tomava a casa toda. Meu pai também não gostava, nós até saíamos de casa, ou ameaçávamos, mas agora eu era o Jeffrey Steingarten. E outra coisa: mandioquinha é um vegetal, eu estava prestes a virar colunista da Vogue, não podia me deixar abater por um vegetal, havia até comido testículos, o que era um vegetal perto disso?
Assim perdi o medo da mandioquinha e fui ao interior do Nordeste. Provar buchada de bode. Miúdos sempre foram uma questão para mim, e vi as bolas feitas com o estômago do animal e sabia que estavam recheadas com rins, fígado e vísceras lavadas, aferventadas, cortadas e muito bem temperadas. E vi aquelas pessoas todas apreciando a buchada como se fosse caviar, e se eles faziam aquilo, eu também faria.
A única coisa que não consegui comer foi cachorro. Até fui à Coréia do Sul, depois tentei de novo na China, mas não deu. Não se comem animais de estimação, foi o que pensei, mesmo que sejam criados para o abate. Mas aí eu já não era o Jeffrey Steingarten.
- Autoria: Luís Roberto Amabile
- Doutorando da Faculdade de Letras / PUCRS
Faculdade de Letras / PUCRS