O que acontece quando alguém, dez anos depois de ser dado como morto, já emitidos os atestados e distribuídas as heranças, volta, como que num passe de mágica, para o mundo dos vivos?
A literatura deu conta dessa possibilidade e podemos encontrá-la, talvez pela primeira vez, em O coronel Chabert, de Honoré de Balzac, publicado em versão definitiva no ano de 1844. Chabert, o coronel que dá o nome à novela, é gravemente ferido na Batalha de Eylau, e tido como morto por médicos e oficiais. Na França de Chabert, os anos passam e as transformações ocorrem: a rua em que morava mudou de nome, a casa em que vivia foi destruída, a sua mulher levou a vida adiante e se casou com um conde, o dinheiro e os bens não lhe pertencem mais. E, apesar de tudo, Chabert sobrevive: vê-se curado de terríveis ferimentos, erra durante anos pela Europa na situação de um mendigo e então retorna ao país em busca do que foi seu.
Na novela de Balzac, o regresso do então morto Chabert é desastroso. O coronel pena para convencer alguém de que, de fato, é o oficial ferido em Eylau, e para muitos é tratado como mentiroso ou lunático. A sua esposa não responde as suas cartas, não há dinheiro para se pensar numa nova vida. Chabert, ainda assim, cogita ingressar numa longa batalha judicial para reaver seus bens, mas desiste em meio ao sentimento de incompreensão. Ao se deparar com a ex-mulher pela primeira vez, Chabert não evita o questionamento: “erram os mortos ao voltar?”.
A hipótese também aparece na literatura contemporânea. Em Os enamoramentos, publicado em 2011 pelo espanhol Javier Marías, o personagem Díaz-Varela lê a novela de Balzac para se aproximar de Luisa, que ainda chora a morte de Miguel, o marido. Após a leitura, Díaz-Varela conclui: “o pior que pode acontecer com alguém, pior que a própria morte; o pior também que alguém pode fazer aos outros é voltar de onde não se volta, ressuscitar na hora errada, quando já não é esperado, quando é tarde e não convém, quando os vivos dão alguém por terminado e prosseguiram ou reataram suas vidas sem contar mais com ele”.
Ao menos na ficção, o melhor destino para Chabert seria a fossa no campo de batalha de Eylau e sua eternidade de morte, e não o retorno a um lugar que não lhe pertencia mais.
- Autoria: Iuri Müller
- Mestrando da Faculdade de Letras / PUCRS
Faculdade de Letras / PUCRS