Rodolfo Walsh estava num café de La Plata, às voltas com um tabuleiro de xadrez e um copo de cerveja, quando ouviu falar pela primeira vez sobre o caso dos fuzilamentos clandestinos que narraria depois em Operação Massacre. No prólogo definitivo do livro, reescrito algumas vezes, Walsh escreve que a partir desse momento deixou os bispos e as torres de lado para aventurar-se na “vida real”, e também no relato de não-ficção. Se é certo que com o jornalismo Rodolfo Walsh construiu outra consciência política (combativa e indignada, a serviço dos trabalhadores organizados e dos que não encontravam espaço na Justiça), não se pode dizer que depois daquela noite de La Plata, em que o xeque-mate e o gole foram interrompidos bruscamente, Walsh tenha abandonado o jogo de xadrez e o que ele representa para a sua literatura – tão ou mais poderosa do que puderam ser os seus textos políticos e jornalísticos.
Publicado em 2013 no Brasil, o livro A máquina do bem e do mal finaliza a tradução dos contos de Rodolfo Walsh para a língua portuguesa. Seis dos contos do volume aparecem sob o título prévio de “Os casos do delegado Laurenzi”. Como em textos anteriores, outra vez está presente o personagem Daniel Hernández, que decifra os enigmas a partir da experiência e do raciocínio típicos do revisor de textos. Ou do jogador de xadrez. Laurenzi e Hernández se encontram repetidamente no Café Rivadavia, às vezes durante longas madrugadas, em outras ocasiões pouco antes do almoço. Ali, tomam café (o delegado prefere a cachaça) e devoram peões aos montes. Entre uma jogada e outra, um gole e outro, o delegado contará a Hernández uma de suas tantas histórias: ele, afinal, esteve à frente das mais obscuras delegacias das províncias argentinas, e dos extremos norte e sul surgem histórias sobre profetas, charlatões e criminosos impensáveis. A narração de Laurenzi é, de tempos em tempos, entrecortada pelas dúvidas de um Hernández bem menos atento do que em livros anteriores. Agora, a lucidez e o raciocínio cabem melhor ao delegado.
O enxadrista, mais do que calcular habilmente cada um dos seus movimentos, atenta para outra condição, igualmente fatal: prever, ou acreditar que poderá imaginar, também as ações de seu adversário. Assim ele irá se movimentar pelo tabuleiro, atento ao jogo de quem está sentado à sua frente. Rodolfo Walsh talvez tenha jogado xadrez em cada um dos seus melhores livros. Narrativas perfeitas de não-ficção como Operação Massacre e Quién mató a Rosendo? se ancoram em pistas, no raciocínio, no que os poderosos buscam esconder para que a história não ganhe outra versão que não a que convém ao imobilismo. No xadrez, a condição em que um dos jogadores não poderá escapar da derrota seja qual for o seu próximo movimento é chamada de “zugzwang”, palavra que também dá nome a um dos contos de A máquina…. No conto, o narrador apresenta um jogo de xadrez por correspondência mantido há meses por um homem calado que frequenta os cafés bonaerenses e um inglês que, no passado, também esteve na Argentina. Mais do que as indicações do próximo movimento, as cartas também revelam algo sobre a vida de cada um, inclusive laços improváveis e violentos entre os dois. É mais um dos casos em que o leitor, à frente dos escritos de Walsh, também se vê encurralado: e então será preciso permanecer no jogo.
- Autoria: Iuri Müller
- Mestrando da Faculdade de Letras / PUCRS
Faculdade de Letras / PUCRS