Em 2011, Gonçalo M. Tavares lançou Short Movies, um livro no qual, o narrador, como se fosse uma câmera, retrata cenas do dia a dia. Mas não qualquer cena: o olhar é circunscrito a cenas específicas que revelam o aspecto absurdo do cotidiano. Também eu resolvi tentar. Inspirei-me no prolífico e multipremiado escritor português e fui em busca de escrever um “short movie”. Eis:
A MULHER E O BEBÊ
A mulher de meia idade, mais para lá, de blusa verde como a bandeira, de mangas compridas, de lã, com bolinhas de tanto uso, a mulher tremula ao falar para as duas outras, uma sentada ao seu lado à mesa do restaurante lotado pelo meio-dia e pelas opções em conta de à la minuta, que na lousa que as anuncia já foram grafadas como alaminuta ou ala minuta ou a lá minuta, a mulher gesticula e mexe o pescoço e olha para as outras duas, elas são mais jovens, a da frente segura um bebê de colo, o bebê é uma menina gorducha de tanta roupa, de calça mijão rosa choque e casaquinho branco e gorro amarelo-bebê, que também tremula, o gorro amarelo bebê tremula porque o bebê tremula, mais do que a mulher de meia idade, então os pequenos olhos infantis param.
O bebê se fixa na mulher, como se deixasse de tremular para ficar observando a mulher tremular, a mulher e seus cabelos negros obviamente tingidos e um corte à la chanel, a mulher cuja pele se fosse lã poderia estar cheia de bolinhas, não, não estaria, a pele está brilhosa, enquanto a mulher fala e gesticula diferentes pontos de seu rosto refletem a luz de modo mais acentuado, principalmente na mandíbula proeminente, a mulher se vira e se volta para cada uma de suas interlocutoras e o bebê tudo observa agora quieto agora atento agora desanda.
O garçom surge com três frango ao molho com polenta mole, arroz, feijão e salada e o pede licença para colocá-los na mesa, o bebê nem nota nem nada, o bebê continua olhando a mulher, que sorri.
O sorriso é de obrigado ao garçom e os dentes são grandes e tortos e encavalados e a gengiva mesmo assim sobra na boca cheia de baba da mulher.
E o bebê desandou a chorar.
- Autoria: Luís Roberto Amabile
- Doutorando da Faculdade de Letras / PUCRS
Faculdade de Letras / PUCRS