Alguém entende James Joyce?

James Joyce, Sylvia Beach e Adrienne Monnier na livraria Shakespeare and Company
James Joyce, Sylvia Beach e Adrienne Monnier na livraria Shakespeare and Company

Se hoje Joyce leva a fama de escritor difícil e incompreensível, talvez a culpa não seja exatamente dele. Ou melhor, se Joyce é um escritor difícil e incompreensível, a culpa talvez não seja de sua criatividade, a culpa talvez seja, pelo menos em parte, de sua caligrafia. Exagero? Não, exagero nenhum: sua letra era tão complicada – à beira do garrancho ininteligível – que a produção de Ulisses (1922) chegou a ser interrompida porque ninguém conseguia datilografar o manuscrito do capítulo 15, o episódio de Circe, quando Stephen e Leopold Bloom deliram no bordel de Bella Cohen.

Quem conta a história, no delicioso Shakespeare e Company: uma livraria na Paris do entre-guerras (Casa da Palavra, 2004), é Sylvia Beach, dona da livraria e editora que publicou a odisseia do autor irlandês:

“Joyce vinha tentando, em vão, que alguém datilografasse aquela passagem. Nove datilógrafas haviam fracassado na tentativa. A oitava, contou-me Joyce, ameaçara, em seu desesperado, atirar-se da janela. Quanto à nona, tocara a sua campainha e, quando ele abriu a porta, atirou as páginas que estavam prontas no chão e saiu correndo pela rua, desaparecendo para sempre. ‘Se pelo menos ela tivesse me dito seu nome e endereço, eu poderia pagá-la pelo trabalho que fez’, lamentou Joyce. Não tinha memorizado seu nome quando um amigo os apresentara”.

Para terminar de datilografar o manuscrito, três outras voluntárias ainda entram na história. Mas aí o problema foi outro: encolerizado com o conteúdo do livro, o marido da voluntária nº 03 simplesmente arrancou as páginas da mão da esposa e atirou os papéis ao fogo. Por sorte, existia uma cópia do manuscrito em viagem aos Estados Unidos. O destinatário era o editor John Quinn, que, depois de uma negociação ferrenha, concordou em fotografar o texto e enviar as imagens para a Europa.

“Ulisses, como todas as obras de Joyce, foi inteiramente escrito à mão”, continua Beach. “Ele usava lápis pretos rombudos – comprava seus preferidos na Smith’s de Paris – e outros de cores diferentes para distinguir as partes em que ainda estava trabalhando. Canetas-tinteiro eram-lhe incompreensíveis e deixavam-no aturdido. Certa vez eu o encontrei pelejando para recarregar uma, tomando um banho de tinta no processo. Anos mais tarde, ele chegou a cogitar utilizar uma máquina de escrever e pediu-me que lhe conseguisse uma Remington silenciosa. Não tardou a substituí-la pela barulhenta de Adrienne – e, até onde sei, nunca usou nenhuma das duas”.

Com o agravamento de seu problema de visão, Joyce passou também a ditar seus livros para ajudantes e amigos, como, por exemplo, Samuel Beckett. Finnegans Wake foi escrito assim. Reza a lenda, no entanto, que, enquanto Joyce ficava cego e não podia escrever, Beckett estava ficando surdo e mal conseguia ouvir, daí até hoje quase ninguém entender do que se trata o livro.

Autoria: Davi Boaventura
Doutorando da Faculdade de Letras / PUCRS
Colaboração:
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