Kerouac casou por encomenda?

Jack Kerouac por Tom Palumbo, década de 1950
Jack Kerouac por Tom Palumbo, década de 1950

Sim, sim, sim, é possível dizer que Jack Kerouac casou por encomenda: os “loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos”, os beats, como ele escreveu em On The Road (tradução de Eduardo Bueno), podem até ter queimado em “fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante […] pode-se ver um brilho azul e intenso”, mas, enquanto inflamavam a literatura norte-americana em meados do século XX, eles também se envolveram em arranjos sociais quase oitocentistas pelos motivos mais estapafúrdios. No caso do escritor de origem franco-canadense, por exemplo, o matrimônio serviu para livrá-lo da prisão.

No início da década de 40, quando não era famoso nem tampouco havia publicado um livro sequer, Kerouac frequentava um grupo formado por jovens intelectuais, como William Burroughs e Allen Ginsberg, além de músicos, artistas plásticos e traficantes, sob a sombra da II Guerra Mundial e dos clubes de jazz. Entre os integrantes, Lucien Carr e David Kammerer. Em Os hipopótamos foram cozidos em seus tanques (tradução de Alexandre Barbosa de Souza), escrito em parceria entre Burroughs e Kerouac, Burroughs escreve que Lucien era “o tipo do menino para quem as bichas letradas escrevem sonetos que começam assim: ‘Do corvo tens a cor dos cabelos, grego varão…’” e que Kammerer era “um homem de aparência impressionante, grisalho de seus 40 e poucos anos, alto, um pouco flácido. […] Um ator decadente ou alguém que já foi alguém um dia”. Kammerer era apaixonado, ou obcecado, por Lucien. Lucien, embora tentasse fugir, não conseguia se afastar de Kammerer. No fim, o deus grego acabou assassinando o homem impressionante.

O crime aconteceu em agosto de 1944. Alegando mais uma tentativa agressiva de avanço sexual de Kammerer, Lucien matou David com uma faca de escoteiro. Amarrou os braços da vítima com um cinto, encheu os bolsos do casaco dele com pedras e o jogou no rio Hudson, em Nova Iorque. Depois foi procurar Kerouac e Burroughs para pedir ajuda, sendo aconselhado pelos dois, embora de modo confuso e pouco útil. Quando Lucien se entregou, os dois jovens escritores terminaram detidos para investigação. Burroughs, vindo de uma família relativamente abastada, conseguiu pagar sua fiança. Kerouac, sem condições de arcar com o valor, aceitou casar com Edie Parker, sua namorada à época, para receber um dinheiro da família da mulher e poder se livrar da cadeia.

Essa história aparece contada pelos próprios escritores envolvidos no já citado E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques, redigido logo depois do caso, mas somente lançado na primeira década do século XXI, quando todos os implicados já tinham falecido – Carr, depois, virou um jornalista famoso nos Estados Unidos e morreu em 2005. A mesma história também apareceu, com modificações, tanto no primeiro livro de Kerouac, Cidade pequena, cidade grande (1950) quanto em Go (1952), de John Clellon Holmes, um dos livros iniciais da geração beat. Mais recentemente, o assassinato virou base do filme Versos de um crime (2013), com Daniel Radcliffe, o eterno Harry Potter, interpretando Allen Ginsberg. A qualidade do filme, no entanto, não anima recomendação alguma e o roteiro bem poderia ter sido cozinhado um pouquinho mais.

Autoria: Davi Boaventura
Doutorando da Faculdade de Letras / PUCRS
Colaboração:
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