Os escritores e seus estilhaços

Autores e suas obras podem ser cachorros cinzentos com uma estrela na testa que irrompem pelos becos do mercado (no primeiro domingo de dezembro), reviram mesas de frituras, derrubam barraquinhas de índios e toldos de loterias, e de passagem mordem pessoas pelo caminho. Era o caso de Rodolfo Walsh, sobre quem falei num evento na PUCRS e sobre o qual seria esse texto. Também era o caso de Gabriel García Márquez, a quem precisava citar, vocês sabem a triste razão, e a quem parodio aproveitando a abertura de Do amor e outros demônios.

Walsh e García Márquez – que, aliás, se conheceram e foram amigos na Cuba dos anos 1960, onde ambos moraram para apoiar e contribuir à revolução – foram cachorros cujas obras mordem leitores e lhe deixam marcas mais do que duradouras. A exemplo do que acontece com a pequena marquesa de nome Sierva Maria de Los Angeles em “Do amor e outros demônios”. A exemplo de mim e do Iuri Müller.

O Iuri é o autor de Estilhaços de Rodolfo Walsh, um livro-reportagem publicado pela cartonera Maria Papelão Editora, de Santa Maria (RS).

Escritores e suas obras também são granadas, que espalham fragmentos, lançam estilhaços nos leitores.

Em agosto de 2012, Iuri Müller passou duas semanas em Buenos Aires. “Era preciso reunir documentos, realizar entrevistas, acrescentar livros à lista de leituras, aproximar-me geográfica e simbolicamente da figura de Rodolfo Walsh”, ele conta no livro.

Alguns meses antes eu tinha ficado um tempo na capital argentina. Nada a ver com o Walsh, mas ele e sua obra se projetaram sobre, como narro no texto que li no evento da PUCRS.

Evento do qual o Iuri Müller deveria ter participado, eu acho. Mas não sabíamos de seu livro. Agora que sabemos – eu sei –, faço-lhe duas perguntas.

Por que esses “estilhaços” do Walsh (sua obra, suas ideias) nos atingem tanto, ainda hoje?

Penso que a obra de Walsh (e a ideia dos seus livros) permanecerá atual porque as suas questões são mais do que pertinentes no nosso século. A América Latina não é a mesma das ditaduras de Videla, Pinochet, Bordaberry e Costa e Silva, mas ainda é um continente de injustiças e fuzilamentos clandestinos, como aquele que aconteceu em José León Suárez e é narrado em ‘Operação Massacre’. Na literatura, penso que Walsh pôde alcançar um alto nível no conto – seus relatos policiais e textos como ‘Essa mulher’ e ‘Nota de rodapé’, por exemplo, são cuidadosamente planejados na forma e fortíssimos em mensagem – e se preocupou, durante todo o tempo em que escreveu, com a relevância e o objetivo do que fazia.

O que você acha da “apropriação” do Walsh pelos últimos governos argentino?

Na Argentina, ao contrário do que acontece no Brasil, o terrorismo de Estado que encontrou espaço na última ditadura militar (1976-1983) foi investigado e muitos dos responsáveis acabaram julgados. Como os textos de Rodolfo Walsh têm nitidamente um viés combativo, de denúncia política e social, eles também vieram à tona recentemente, quando os crimes da repressão foram amplamente discutidos na sociedade argentina. Afinal, Walsh foi uma das tantas vítimas do regime militar, e acabou perseguido e morto num dos bairros centrais de Buenos Aires em 1977. No debate que mencionei, o governo federal (com Cristina e Néstor Kircher, mas inclusive antes dos K) de alguma maneira buscou se relacionar com a imagem e a história de militantes como Rodolfo Walsh. O cenário político argentino é complicado e dinâmico, mais instável até mesmo do que o brasileiro, de modo que é difícil saber o que pensaria Walsh disso tudo se estivesse vivo. Penso que continuaria exercendo o pensamento crítico, mais além do governo que estivesse no poder.

Autoria: Luís Roberto Amabile
Doutorando da Faculdade de Letras / PUCRS
Colaboração:
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