Voce sabe como a literatura acompanha a vida nas cidades?

A literatura brasileira sempre acompanhou o movimento das cidades. Especialmente a partir do século XIX, ela se encarregou de fazer a crítica e o registro das grandes transformações que ocorrem na sociedade.

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Seu mais ilustre representante, Machado de Assis, apresenta, através de seus romances, um panorama da vida na cidade do Rio de Janeiro. Em Quincas Borba, por exemplo – em que conta a história de Rubião, um modesto professor do interior de Minas Gerais, que herda fortuna do amigo, Quincas Borba, e resolve abandonar a pacata cidade provinciana mudando-se para o Rio de Janeiro – descortinam-se os cenários da “Corte” durante o Segundo Reinado.

Com abundantes referências ao traçado das ruas, às mansões, às praças, à iluminação a gás, e a intensa movimentação social, Machado vai narrar a luta de Rubião para pertencer a aquele meio e decifrar seus códigos.

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A vida no Rio de Janeiro do começo do Segundo Reinado ainda apresentava características dos ambientes que configuravam a cidade quando da vinda da família real. Ricos e pobres dividiam os mesmos espaços e as classes eram apenas diferenciadas pelas fachadas das casas. Com a aglomeração no centro da cidade, as famílias mais abastadas passaram a buscar chácaras na zona sul onde o clima era mais ameno e havia mais locais mais espaçosos.

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Até 1850 estas chácaras de fim de semana passariam a se tornar moradias regulares. Este deslocamento favoreceu o desenvolvimento da região pelo incremento da iluminação e dos transportes. Os bondes começaram a circular, favorecidos pelo investimento estrangeiro e, em 1854, é construída a primeira estrada de ferro brasileira unindo a Baía da Guanabara a Petrópolis.

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No século XIX eram muitos os problemas graves e urgentes enfrentados pelas cidades e o saneamento básico concentrava a maior parte deles. A medida que as cidades se tornavam mais habitadas, os inconvenientes cresciam.

Assim que chegou de Barbacena, a personagem de Machado de Assis, Rubião, fixou residência em Botafogo, uma das casas recebidas na herança. O bairro do Botafogo era dos mais prestigiosos da cidade.

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Desde que, anos atrás, a rainha Carlota Joaquina decidira ter ali uma chácara de fim de semana, as famílias de posses deslocaram-se para lá na esperança de acenarem para ela em seu passeio diário até o Paço Imperial. Assim, a zona sul passou a ser o lugar das classes mais abastadas que também buscavam espaços mais arejados e próximos ao mar. Porém, apesar destas vantagens, o local também apresentava os problemas comuns ao saneamento precário do Rio de Janeiro anterior às grandes reformas de Pereira Passos (em 1902). Os problemas de infraestrutura urbana também aparecem no Romance de Machado. Num dos almoços em casa de Rubião, Carlos Maria interpela-o: “O senhor dá-se bem com a residência aqui em Botafogo? (…). A vista é bonita, mas nunca pude tolerar o mau cheiro que há aqui, em certas ocasiões” (MACHADO, 1994, p. 43).

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Desde meados do século XIX diversos cronistas chamavam atenção para a urgência dos cuidados que a cidade reclamava. A precariedade das instalações sanitárias da cidade do Rio de Janeiro só iria sofrer mudança significativa após entrar em vigor o programa higienizador do Prefeito Pereira Passos, em 1902. Até lá, apesar do projeto de esgotamento sanitário de João Frederico Russel, iniciado em 1863, os moradores ainda teriam de conviver com medidas paliativas e descaso das autoridades. O Passeio Público, principal ponto de encontro das famílias para um passeio de fim de tarde, aparece em diversos registros como visitado por “pútridos miasmas”, os quais costumavam afastar os visitantes do local, o que “já gerara protestos de José de Alencar em 1854” (TRIGO, 2001, p. 117).

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No início dos anos 1860, Joaquim Manoel de Macedo convida para Um passeio pela pidade do Rio de Janeiro, através da publicação em livro de uma reunião de artigos seus para o Jornal do Comércio em que traz memórias da cidade e faz relatos das situações que os moradores vivenciam. O Passeio Público merece longo comentário sobre a ausência de reformas desde a sua fundação em 1783 até 1841, data das obras de Rangel de Vasconcelos, e novamente do total abandono até 1860, ocasião em que visitou a cidade o arquiduque Maximiliano, da Áustria, grande apreciador das paisagens fluminenses, que passeou alto do Corcovado, a Gávea, a Tijuca e o “pitoresco” Morro de Santa Tereza:

“Chegou, porém, um dia em que o príncipe, deixou o caminho das alturas, penetrou no seio da cidade, dirigiu-se pela rua das Marrecas e penetrou no Passeio Público, foi subir ao terraço, donde poderia apreciar ainda uma vez a magnificência da nossa baía. Mas ah! Mal tinha o arquiduque avançado quatro passos no recinto da elegante varanda, e já com ambas as mãos levava o lenço ao nariz!… (sic)” (MACEDO, 1942, p. 97).

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Macedo declara que só depois deste vexame e do “brado” geral que se seguiu, o governo cuidou de modernizar e higienizar o Passeio Público, ainda que com a perda das árvores. O escritor vê com bons olhos as reformas e a modernização de sua cidade. Quer igualá-la às do “mundo civilizado” e contará com a solidariedade de outro ilustre cronista: Olavo Bilac, que em 1906, apóia as medidas no sentido de mudar o centro da cidade e declara-se escandalizado ao ver

“passar pela Avenida Central um carroção atulhado de romeiros da Penha; e naquele boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, entre as fachadas ricas dos prédios altos, entre as carruagens e os automóveis que desfilavam, o encontro do velho veículo, em que os devotos urravam, me deu a impressão de um monstruoso anacronismo; era a ressurreição da barbaria – era a idade selvagem que voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da cidade civilizada.” (sic.) (GOMES, 1994, p. 107-108).

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Já no início do século XX, as crônicas de João do Rio falarão sobre as perdas que a cidade acumula no seu processo de modernização, e Lima Barreto (em 1956) fará mau juízo das reformas que parecem querer vestir o Rio de Janeiro num “modelo parisiense”.

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Ao lado dos avanços necessários à qualidade de vida dos habitantes, a modernização das cidades acarretava a perda de suas memórias. Em 1940, Marques Rebelo protestou em suas crônicas, contra a “fúria urbanística” que trazia a “transformação grosseira e desnecessária da fisionomia da cidade”, que punha abaixo igrejas seculares para dar passagem à Avenida Presidente Vargas, no auge do Estado Novo. Rebelo constata a perda de monumentos da memória urbana, como a igreja “do Bom Jesus do Calvário, duas vezes secular e que muito aparece nas Memórias de um Sargento de Milícias”, dando a indicações de que esta memória só será possível ser resgatada através da literatura, “lugar de inscrição do passado frente ao que vai se transformando em ruínas”.

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A tradição de falar sobre a cidade, identificada na literatura brasileira desde o século XIX, alcança o ano de 1991 através do olhar de Rubem Fonseca, que colocará a nú a face segregadora e repressiva da cidade sobre as expressões individuais. No seu conto, “A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro” – cuja epígrafe é extraída do citado livro de Joaquim Manoel de Macedo, publicado em 1862 – sua personagem, Augusto, é um escritor e, assim como o poeta de Baudelaire, encontra sua obra no “lixo” que recolhe pelas ruas, aproveitando o que a cidade rejeitou.

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