O interior despedaçado em Quebranto

Quebranto (e-galáxia, 2014) é o primeiro livro de contos de Marcos Vinícius Almeida, autor também do romance Inércia (Multifoco, 2009). As histórias foram escritas e reescritas entre 2011 e 2013, entre Porto Alegre e São Paulo, onde o autor hoje vive, mas capturam o universo da vida no interior do Brasil. A vida besta de Drummond, a sordidez da “gente boa da roça” de O’Connor, toda a riqueza íntima e de linguagem das cidades pequenas são elementos tão presentes nos contos de Quebranto que o livro quase se chamou “Interior despedaçado”.

“Há no interior uma atmosfera muito singular que me atrai. Uma postura mais contemplativa com a vida. Uma disposição genuína para contar histórias”, diz o autor, que, nascido em 1982 em Taboão da Serra, grande São Paulo, viveu a maior parte da infância e da juventude em Luminárias, cidade mineira hoje com cerca de cinco mil habitantes. “Mas também há muita pobreza, provincianismo e romantismo ao tratar desses espaços mais remotos. Talvez a coisa que mais me motive nisso tudo é a questão do arcaico e do moderno convivendo juntos. É um conflito muito forte no Brasil. Encontra-se, por exemplo, sujeitos guiando carros-de-boi com um celular no bolso”. De fato, nos contos de Quebranto arde também a agitação que se associa mais com as metrópoles e seu cardápio sofisticado de distrações, sempre incapazes de satisfazer. Entre os exemplos inspiradores na abordagem das cidades pequenas, Marcos Almeida cita a Júlia Murat de Histórias que só existem quando lembradas (2011), o cineasta turco Nuri Bilge Ceylan e o escritor Oswaldo França Júnior, do qual Quebranto empresta a epígrafe.

036

Para conhecer mais de Quebranto, o site do escritor é quebracorpo.blogspot.com.br. Para estender a trova aqui mesmo, repita o cafezinho, generoso na água e doce de rapadura, e segue mais um dedo de prosa:

Como você acha que se dá, no seu processo de criação, a utilização de suas vivências e memórias?

Acho que a memória é fundamental. Só posso criar a partir da minha experiência, é o que tenho. Não acredito que a imaginação opere totalmente ex nihilo. A memória atua de forma intuitiva, junto com a imaginação. Mas há também casos em que tipos, cenas, dicções, lugares ou episódios que me impressionaram de alguma forma surgem de modo mais consciente. Essas coisas costumam funcionar como ponto de partida. Mas não tenho interesse nenhum em produzir um relato documental.

Como foi a história dessa publicação? O que te levou a publicar em ebook?

Eu achei interessante o projeto da e-galáxia. É uma excelente plataforma para publicação independente. Eles tratam os projetos exatamente como numa publicação tradicional. E tem a vantagem do poder ser lido em diversos dispositivos: CPU, tablet, celular, e-reader. Acho que funciona bem para contos. Tanto a escrita como a publicação do Inércia foram coisas mais intuitivas. Agora, foi um processo mais consciente e consistente.

Piglia, entre outros pensadores do conto, enfatizam o seu caráter duplo e elíptico: há uma segunda história por trás da história. Em Quebranto, vejo muitas histórias dentro da história. Os contos exibem uma galeria de sujeitos que, embora secundários nas tramas, têm nome e apelido e uma história para contar, mesmo que de passagem. Você se identifica com o narrador do conto homônimo, esse alguém que não se esqueceu daquela pequena tragédia trivial da vida do outro, e que fala dela nas noites em que bebe demais?

Essa questão das histórias dentro das histórias é uma coisa de que gosto bastante. O Oswaldo França Júnior também me serviu de referência nesse sentido. Há muitas narrativas dentro das narrativas em Dois irmãos. Acho um recurso interessante. Sobre os personagens: eu gosto de conviver com os personagens que crio. Gosto de descobrir quem eles são. É uma relação curiosa. Às vezes parece um processo arqueológico: há os indícios, então você vai escavando aos poucos e de repente aparece a forma completa. Sobre o narrador do conto Quebranto, eu não sei muito bem em que sentido me identifico com ele. Acho que todo mundo tem uma dessas histórias que nunca vai embora. Dessas que não dá para esquecer. Dessas que sempre se conta quando bebe. Eu gosto de ouvir essas histórias.

Autoria: Moema Vilela
Doutoranda da Faculdade de Letras / PUCRS
Colaboração:
Logotipo Faculdade de Letras da PUCRS Faculdade de Letras / PUCRS